Em tempos muito antigos, seria a Mira ainda um lugar de Minde, houve um ano de rigorosa seca que deixou enxutos muitos dos poços das redondezas, já naquele tempo as alterações climáticas a ameaçarem a Humanidade e ninguém soube interpretar os avisos da Natureza.
Neste quadro de extrema estiagem, uma mulher minderica, que precisava de água para de tarde cozer o pão, manda de manhã suas duas filhas, uma de 13 e outra de 15 anos de idade (rigorosa é a lenda nestes pormenores etários), irem abastecer-se a um poço que ficava próximo da Pena do Poio e que seria sempre dos últimos a secar. (1)
Tantos detalhes de narrativa e esqueceu-se a lenda de assentar o nome de que poço se trataria. Sabe-se lá se não seria a Cisterna Grande, que para essas bandas fica e de outra história neste Blog faz parte. Bem. Fosse essa ou outro reservatório qualquer pouco importa ao desfecho da resenha.
Lá foram as duas rapariguinhas com as quartas de barro de braçado, eis quando, ao passarem defronte da nascente seca da Pena, se deparam com duas outras meninas muito lindas, vestidas de encarnado, está visto que neste sítio só podem ser duas moiras encantadas, e uma delas perguntou às mindericas para onde iam tão decididas.
– Nossa mãe quer cozer pão esta tarde e nós vamos ao poço buscar água para o amassar – respondeu, expedita, a mais velha.
– A água do poço onde ides está muito toldada – diz uma das de encarnado. – Deem-me cá as infusas, que eu e a minha mana vamos enchê-las de água pura no nosso depósito no Poio – estas meninas de encarnado deveriam ser também de educação minderica, pois se fossem mirenses diriam «nosso depósito na Pena» (em Minde diz-se nascente do Poio, na Mira nascente da Pena), subtilidades autóctones que é sempre bom ressalvar, e prosseguiu – mas fazemo-lo com a condição de nos trazerem, aqui mesmo, um bolo sem sal – tão jovenzinhas e já com rigores de dieta.
As raparigas deram-lhes as quartas, esperaram um pouco e, passado algum tempo, as moiras regressaram entregando-lhas cheias e advertindo-as de que não se esquecessem de cumprir a promessa feita: trazerem-lhes o tal bolo ensosso.
Retiram-se as duas irmãzitas no endireito de casa, bilhas à cabeça, e, já próximo de casa, desabafa a mais nova para a mais velha:
– Muito pesa a minha quarta. Vou derreada de todo. Descansemos um pouco, mana Peregrina – ficámos a saber o nome da mais velha, chama-se Peregrina, quanto à mais nova a lenda não lhe registou a graça.
Aliviaram-se dos cântaros, pousaram-nos no chão e, espreitando-lhes pelo gargalo, constataram que o da mais velha, efetivamente, estava cheio de água cristalina, mas o da mais nova, qual o espanto de ambas e nosso também, encontrava-se atestado de negro carvão, que logo ali derramaram fora, charneca além, correndo assustadas para casa a narrar à mãe o sucedido, tim-tim por tim-tim, entre lamúrias e desgostosas lágrimas.
– Ai filhas! – torna-lhes a mãe, muito presumida e interpretativa – acabastes de perder uma grande fortuna! Esse carvão era ouro encantado, que perdia o encantamento quando chegassem a casa. Vamos ver se ainda lá está.
E abalaram, mãe e filhas, esbaforidas a correr atrás do minério jogado fora, mal sabiam elas, naquela recuada época, que os Mouros, ou Árabes, como hoje comummente se lhes chama, iriam fazer fortunas com ouro negro, o petróleo, mas no sítio em que tinham despejado a quarta nem pó do dito carvão encontraram, logo se vê que por artes fantásticas se sumiu.
Regressaram a casa descoroçoadas de todo. Todavia, por grande casualidade, a mais novita, ao movimentar-se, caiu-lhe de uma manga da vestimenta uma pedra de carvão que acidentalmente lá se enfiara e que, ao tocar o chão, em ouro se transformou, mas que grande prodígio, uma pena não ser maior a pepita.
Na esperança de que as moiras reaparecessem e o áureo encanto se consertasse, a mulher cozeu na mesma a merendeira sem sal e mandou as filhas levá-la à Pena. Porém, azar dos enguiços, não voltaram a aparecer, pois terão os encantamentos seus preceitos: ou se seguem as devidas regras ou não temos maravilha. Junto das penas, contudo, ouviam-se estereofónicas vozes femininas cantando:
Mais vale a Pena do Poio
Só com seus penedais,
Que Santarém e Lisboa
Com todos os seus cabedais!
Se os moços cristãos soubessem
O valor que o Poio tem,
Quebravam nosso encanto
E falavam a nossa mãe!
Minha mãe nasceu em Minde,
Nasceu meu pai em Mirão,
Nós nas peninhas do Poio,
Onde é nossa habitação!
Nosso pai está em Alcanede,
Em Minde nossos avós,
Nossos tios e nossas tias
Residem em Porto de Mós.
Desta forma termina a Lenda das Moiras da Pena do Poio, sem mais revelações nem esclarecimentos, ficando por saber se algum mancebo cristão, entretanto, por amores lhes terá quebrado o encanto.
O certo é que de hoje em dia não há notícia de por lá terem sido vistas, não obstante em meados do século passado ainda se contasse que, em noites luarentas, aparecia roupa estendida ao largo da nascente (2) – reclusas em seu encantamento mas asseadinhas.
E, bem assim, que um homem, em noite de S. Pedro, por ali lhe chegou a modorra e só acordou alta madrugada com os cantares ao desafio de duas agarenas, um céu aberto de quadras alusivas aos santos populares. Está certo… mas vá lá a gente fiar-se em palavra de romeiro que já emborcou uns canecos nalgum arraial vizinho. (3)
(1) Conta-nos esta lenda A. de Jesus e Silva em O Mensageiro, n.º 128 de 14MAR1917 e aqui se reproduz devidamente remasterizada.
(2) As Nossas Grutas, por M. Lico (talvez o Pe. Manuel Caetano), in Voz de Mira de Aire, N.º especial de Abril de 1958, aquando do 25.º Aniversário de Vila.
(3) MIRO, Aires de, in jornal Voz de Mira de Aire n.º 791, Mira de Aire, 20 de novembro de 2024, p.8.