Quando eu era pequena a minha mãe falava com as velhotas da minha terra. Íamos a casa delas e a minha mãe escutava as suas estórias e as suas histórias, às vezes gravava. A maioria das estórias eram sobre o que tinha passado, memórias que tinham de uma terra que era a mesma que a minha, mas que já não era a mesma que a minha.
Lembro-me de as escutar ao fundo a falar, a minha mãe a fazer perguntas enquanto eu brincava com uma pedra ou um cão ou qualquer objeto que me despertasse a atenção. São memórias muito vagas. Mas lembro-me nitidamente, de uma estória em específico, por tantas vezes que revisitei esta memória. Era uma casa à frente da minha casa e era daquelas casas que não parecem uma casa por fora. Por fora era só um portão verde muito grande e um bocado de muro alto, só ao entrar no portão se ia dar a um canteiro com calçada de pedra e algumas plantas e com a casa atrás. Lembro-me tão claramente de todo o cenário que não acredito que me lembro, devo ter ido acrescentando mais pormenores imaginários cada vez que revisitei esta memória. Mas vou contar como acho que me lembro ou como imagino que me lembro ou então como me lembro de imaginar. Sei que era tudo muito branquinho, a calçada, as paredes exteriores da casa, os muros e o lençol que a mulher estava a estender. A mulher era muito velha, ou eu era muito nova. Lembro-me que a senhora estava a falar enquanto estendia a roupa e a minha mãe sentada no chão, eu estava a brincar ao pé de uma árvore daquelas que estão rodeadas de pedrinhas. Estava muito longe de tudo, apesar de estar ao pé das duas, mas a conversa estava longe de mim. Consigo lembrar-me com toda a clareza do segundo em que voltei à terra e comecei a ouvir a conversa “mouras encantadas”. Esta senhora não estava a falar de como as coisas já tinham sido como as outras senhoras, ela estava a falar de coisas que nunca tinham sido, eu não sabia o que era, mas sabia que não existia. Comecei a ouvir e ela contou de uma moura a quem tinham levado o seu filho e que agora vagueava entre a serra e o vale a chorar e a tentar roubar as crianças que estivessem sozinhas ao pé de uma janela para substituir o seu bebé. Senti um arrepio, e daqui em diante não me lembro de mais uma palavra dita pela velhota.
A minha mãe disse para nos despedimos e eu despedi-me muito triste, estava a sentir-me desrespeitada, como ousavam ter-me dado uma informação que eu não queria ter de modo nenhum, que provavelmente se eu não soubesse seria muito mais feliz. Agora ia ter de viver com o peso de saber que havia uma moura louca à espreita para me levar da cama. Perguntei à minha mãe porquê que aquela senhora estava a falar naquilo e a minha mãe contou-me que na nossa terra havia muita gente que acreditava nessas coisas, mouras, lobisomens e outras criaturas, mas disse-me também que a minha avó nunca acreditou em nada disso. Fiquei descansada, pareceu-me um argumento sólido, o mais provável é o ceticismo ser hereditário e se a minha avó não acreditou então eu também não ia acreditar. Muito me enganei. Nessa noite quando a minha mãe me foi deitar a mim e à minha irmã eu fiquei cheia de medo. Por um lado tinha a minha irmã e não estava sozinha o que me acalmava o espírito, mas no meu entender a moura tinha preferência por crianças mais novas e a minha irmã, que ainda era uma bebé, era a candidata perfeita, aí eu ia ficar sozinha. Tinha muito medo todas as noites. Mas apesar do medo não conseguia parar de pensar na moura, que durante a reconquista cristã fora separada do seu filho e como o seu espírito se tinha recusado a sair daí sem ele. E apesar de não querer que ela viesse buscar-me, às vezes queria que ela viesse, para poder fazer-lhe companhia, talvez ela precisasse de um amigo e talvez para os espíritos os amigos pudessem ter qualquer idade. Assim eu balançava cada noite, entre ter medo ou ter empatia, rezar ao anjinho da guarda que ela não viesse, mas rezar também que ela estivesse bem. Tornou-se uma figura muito presente na minha vida. Às vezes quando eu estava muito triste pensava nela, que certamente estaria ainda mais e sentia algum conforto e esperava estar a mandar-lhe algum conforto também.
Acho que nunca falei da moura a nenhuma das minhas primas ou amigos, assim como eu fiquei revoltada com a velhota por me ter dado a conhecer esta alma miserável não quis passar-lhes a mesma sorte. No entanto tinha muito orgulho em ter medo da moura, porque tinha medo de uma coisa da minha terra. Alguns meninos não tinham essa sorte, tinham de ter medo das coisas que tinham visto num filme estadunidense, eu tinha um medo digno, que me tinha sido passado pelas velhotas da minha terra, um medo que era a minha herança cultural. Sentia até um certo orgulho, a minha terra era importante o suficiente para ter uma assombração só dela, ali daquele vale, achei que dava distinção à zona, não é qualquer lado que tem monstros ou fantasmas ou bruxas, estas criaturas escolhem cuidadosamente só os lugares mágicos. Também não me lembro de voltar a falar sobre ela com a minha mãe apesar de me atormentar quase todas as noites. Ao longo do caminho a moura parou de ser um medo, penso que houve um período em que foi até um conforto, de tão presente que esteve todas as noites acabei por me afeiçoar.
Cheguei à faculdade em Lisboa e a moura encantada não era mais que uma amiga imaginária de há muito tempo. Nenhum dos males da serra da terrinha te pode fazer mal em Lisboa, porque em Lisboa nada cresce, tudo é construído, tudo é pedra e concreto e real. Na minha terra as coisas não são assim, na minha terra existem coisas que não existem em Lisboa. A imagem da moura manteve-se tão forte em mim que chegou um dia na faculdade em que decidi fazer um trabalho sobre as mouras encantadas para Mitos da Cultura Portuguesa. “Tradição oral portuguesa” só aí percebi o quão antiga realmente era a minha amiga moura. Percebi que as outras mouras ao longo de Portugal normalmente estão a guardar um tesouro e aparecem especialmente perto da água, a moura da minha terra é diferente das outras mouras. A estória que eu ouvi veio de um jogo de telefone estragado geracional com mais de 500 anos em que a estória foi passada e transformada por cada ouvinte e cada contador. Achei que eu mesma não ia contar a estória da moura a ninguém, como quando em pequena que escolhi não falar sobre ela para não assustar nenhuma das minhas primas, mas aqui estou eu a contar a estória, e a tradição oral que me foi passada e alterada altera-se mais uma vez e passa à escrita. Algumas velhotas da minha terra não sabiam escrever. Se soubessem talvez tivessem escrito melhor que eu a estória da moura encantada da minha terra.