Lenda do Canto da Preta

Chegados os Franceses à Mira e a Minde, um bom lote deles, atendendo aos estragos que fizeram, quem pôde fugir fugiu, para outras terras onde tinha família ou amigos, para os ermos das serras, enfiando-se em cabanas de lajes, nos buracos das grutas ou em pardieiros desabitados. Quem não pôde fugir, ou por teimosia não quis, foi molestado. Foi o caso da “Preta”, proprietária do seu “Canto”, que nos desculpe a escura cidadã tratarmo-la assim, mas não subsistiu na História o seu nome.

Bloqueados pelas Linhas de Torres Vedras e já em marcha de retirada, aportaram os Franceses às duas aldeias do polje por alturas do São Martinho de 1810, e por aqui deixaram um trágico rasto de mortandade e destruição. Na Mira foram destruídos 121 fogos e morreram 441 pessoas (62% da população, 250 eram mulheres e 191 eram homens); em Minde, 248 casas arruinadas e 886 mortos ou desaparecidos, quase metade dos residentes (447 homens e 439 mulheres). Na desgraça ficaram à frente os mindericos, o que se explica por ser Minde, na altura, uma povoação com mais do dobro de casas e habitantes que a Mira. Não se pense, porém, que tamanha mortandade se ficou a dever exclusivamente a assassinatos perpetrados pela crueldade Francesa. O maior morticínio resultou de causas indiretas advindas da penúria a que foram votados estes pobres serranos, e os demais portugueses, com pilhagens e requisições desde finais de 1807, aquando da 1.ª Invasão (esta de 1810 foi a 3.ª). O povo deste vale, desde sempre aperreado pela magra produtividade das serras, vê-se agora de todo impedido de as cultivar, por ter de se esquivar ao invasor, e desmotivado, porque tudo o que produzir ser-lhe-á roubado pelos Franceses ou requisitado pelo Estado, sob domínio Inglês, com a corte refugiada no Rio de Janeiro. Sem colheitas nem gado, caem os infelizes mira-mindenses numa piorada miséria, subnutridos, de imunidades e forças a definharem-se. Vêm as fraquezas, as tosses, a febre, o vómito e a diarreia, e a morte a ceifar-lhes a vida. Diretamente mortos pelos Franceses, na Mira foram “apenas” 23, os restantes 418 morreram de doença; em Minde desconhecem-se os pormenores. Esclareça-se ainda que não morreram todos de supetão. A soma dos óbitos situa-se entre novembro de 1810 e junho de 1811, segundo dados coligidos pelos respetivos párocos e enviados ao Bispo de Leiria D. Manuel de Aguiar – detalhes constantes n’O Couseiro.

Num casal situado a duzentos e poucos metros da igreja matriz de Mira de Aire, caminhando-se para norte, vivia um lavrador abastado, detentor de uma fabulosa fortuna. Estar-se-ia no último quartel do século XVIII e não podiam os mirantes adivinhar que, daí a escassos anos, a freguesia seria assaltada por uma tropa estrangeira. Ao dito lavrador, homem rico mas justo, não conferiu Deus a bênção da paternidade, pelo que se viu chegar ao fim da vida sem herdeiros de seu sangue. Sendo fazendeiro e justo (não se confunda com Fazendeiro e Justo, pois o lavrador em causa era “fazendeiro” de posses e “justo” de virtudes, não de sobrenome), decidiu fazer seus legatários aqueles que durante a vida fielmente o serviram: seus criados e criadas. Quis o acaso das partilhas que o casal que o próprio habitava (ali para as bandas onde temos hoje umas ruínas de moradia na Rua da Fiandeira, perto do seu entroncamento com a do Barreirinho) viesse a calhar a uma criada de raça negra, vulgo “preta”. O povo, simplificador da onomástica dos lugares, depressa batizou o sítio de “Casal da Preta” ou “Canto da Preta”, persistindo este último até aos nossos dias, embora sem registo oficial na lista dos topónimos concelhios, o que pode indiciar que o Canto da Preta corre o elevado risco de se extinguir da memória mirense – já não basta a sua física ruína.

Chegados os Franceses à Mira e a Minde, um bom lote deles, atendendo aos estragos que fizeram, quem pôde fugir fugiu, para outras terras onde tinha família ou amigos, para os ermos das serras, enfiando-se em cabanas de lajes, nos buracos das grutas ou em pardieiros desabitados. Quem não pôde fugir, ou por teimosia não quis, foi molestado. Foi o caso da “Preta”, proprietária do seu “Canto”, que nos desculpe a escura cidadã tratarmo-la assim, mas não subsistiu na História o seu nome. Talvez conste nalgum livro paroquial, contudo, omitida a cor da titular, impossível é saber-se que dela se trata. Já velha e debilitada, deixou-se ficar no sossego do domicílio, na esperança de lhe servir de proteção a provecta idade. Descoberta pelos mafarricos, que regrediam das Linhas de Torres, como acima se disse, possessos por as não terem conseguido transpor a caminho de Lisboa, cheios de fome e precisões, pois por ordem dos Ingleses foram Beira e Estremadura completamente destruídas, a fim de lhes não deixar sustento nem abrigo (a “terra queimada” de Wellington), e talvez já bêbados dos vinhos rapinados nas adegas, caiaram a velha senhora, que de preta passou assim a branca, e passearam-na pelas ruas da aldeia em procissão, debaixo do pálio subtraído da Matriz, em grande algazarra e divertimento. Não gostaram da judiação uns campónios mirenses que, pelo muito respeito e amizade que tinham à velha “Preta”, se uniram a três mindericos que arregimentaram para a causa, e ensaiaram vingar-se dos napoleónicos – eis aqui o Movimento Mira-Minde a funcionar há mais de duzentos anos. Conseguiram, à sorrelfa, pegar dois deles. A um, jogaram-no para dentro de uma cisterna com uma grande pedra atada ao pescoço, não soubesse ele nadar e vir ao de cima, passando a chamar-se-lhe “o poço do francês” – talvez alguém mais antigo saiba de que cisterna se trata. O outro, valendo-se da falta de jeito dos campestres para a guerrilha, conseguiu escapar-se para o seu regimento estacionado em Minde e dar parte da sublevação. Invertidos agora os papéis, fugir foi também o que fizeram os rústicos mira-mindenses, à vista de um esquadrão de cavalaria francesa que aí vinha em veloz galopada na sua exata direção com sabres em riste e pederneiras aos tiros. Encontrando-se na altura o campo da Mata submerso por grande cheia, e aproveitando o conhecimento autóctone de pontes e atalhos, conseguiram os fugitivos despistar os perseguidores e, ardilmente, escapar-se às balas disparadas de longe, sumindo-se serra acima em direção às Buracas. [1]


[1] Bibliografia:

– SILVA, António de Jesus e, in jornal O Portomozense n.º 34, Porto de Mós, 30 de agosto de 1899, p. 1-2

– MARTINS, Abílio Madeira e NOGUEIRA, Agostinho – Minde, História e Monografia, Minde, 2002

– RIBEIRO, Joaquim Pinto, ROSA Maria Olímpia, MATOS, Rui Barradas de – Mira de Aire, 75.º Aniversário de Elevação a Vila, Mira de Aire, 2009

– MIRO, Aires de, in jornal Voz de Mira de Aire n.º 731, Mira de Aire, 20 de novembro de 2019, p.12

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