A Nossa Floresta

Gostaria que recordássemos todos, o lugar único onde nos encontramos a viver. Este maciço de calcário que se ergue entre as lezírias do Tejo e o baixo litoral do Oeste, guardando um universo singular do território português: o reino da pedra branca entre o verde biodiverso e o vermelho da terra rossa.

Figura 1. Vista da Pena do Raio para a Costa da Serra e cheia na Mata

Aqui há poucos riachos pois quase todo o fio de água acaba engolido para as rendilhadas profundezas do maciço, que regurgita importantes caudais na sua periferia em todas as direcções – como é o caso dos rios Lis, Alcaide, Almonda e Alviela – que em tempos já saciou a sede de Lisboa – um autêntico berço das águas dos que nos rodeiam. A paisagem detém uma panóplia de estruturas particulares, nascidas da brincadeira arquitectónica da rocha com a água, como são as pias, os algares, os ponors (exsurgências ou olhos de água, sumidouros e ressurgências), os covões, as dolinas com lagoeiros, os poljes com mares quase, as escarpas e arrifes e o mais impressionante complexo de grutas do país. Os serranos criaram outras formas ainda: poços familiares, cisternas comunitárias, casinas, chousos (terrenos delimitados por muros de pedra), caneiros (muretes para sustentar oliveiras individuais). Junta-se à festa da biodiversidade, com flores endémicas raras, matos aromáticos e alguns dos carvalhais mais bem conservados a nível nacional, a residência de saberes, artes e ofícios que engenhosamente se foram desenvolvendo por aqui, e acabamos por nos entregar à contemplação – com um terapêutico passeio na Mata ao entardecer ou um banho revigorante nos Olhos d’Água, uma descida ao mundo subterrâneo ou uma subida à serra sadia.

Figura 2. Mata de Mira-Minde com água

Ao que se seguirá, inevitavelmente, um momento de reflexão: estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance para cuidar deste tesouro?

A transformação da paisagem é, paradoxalmente, uma constante. Os fósseis de conchas marinhas entre o cascalho nas encostas e as pegadas de dinossauros na Pedreira do Galinha dão-nos conta do quanto já mudou a Terra só neste pedacinho em que a pisamos. E os vestígios de Neandertais que andaram pela Gruta do Almonda há mais de cem mil anos falam-nos do início da humanização do mundo, um processo que começou devagarinho nos primórdios dos tempos mas vem acelerando vertiginosamente até aos dias de hoje.

O povo Oestrímnio (4000 a 900 a.C), dedicando-se “à pastorícia e exploração de minérios (…) iniciou a transformação da floresta climácica, começando pelas encostas até esbarrar com as várzeas alagadiças dos fundos dos vales que haviam de permanecer por muito tempo abandonados ao mato e às feras”. Os Celtas, que lhes sucederam, munidos de inovadoras ferrarias, continuaram e acentuaram o desbaste das florestas. “Estes povos viviam da caça, pouco da pesca; comiam farinha de bolota de carvalho, azinheira, sobreiro e carrasco, baga de espinheiro, abrunhos bravos, medronho”.

Ainda vieram os Lusitanos, os Romanos, os bárbaros, os Visigodos, os Mouros, D. Afonso Henriques comandando as tropas portucalenses na conquista do reino. Na época medieval, imperou o feudo das ordens religiosas num esforço de povoar e cultivar as terras mais férteis e domesticar as mais altas para pastagens. Os Descobrimentos foram quase a machadada final na floresta – a tradição diz que a Mata foi sacrificada no consequente derrube de milhares de carvalhos, madeiras nobres como exigia a construcção de naus. A introdução do milho e da batata, outro resultado das navegações, possibilitou a agricultura de sequeiro e, assim, a expansão das zonas de cultivo no maciço, numa região já pontuada por olival e pastorícia nos matos.

Figura 3. Carvalho-cerquinho (Quercus faginea)

A Revolução Industrial, embora interrompida pelas invasões francesas que massacraram as populações locais, acabaria por chegar e instalar fábricas de curtumes, fiação e tecidos, e teares das mantas mindericas, dinamizando a economia e atraindo gentes das terras em redor para trabalhar. Ainda assim, havia muito trabalho a acontecer no campo – despedrar, pastorear, cortar lenha e forragens, tratar do olival e dos moinhos – no equilíbrio atingido com a paisagem. Outros acontecimentos vieram influenciar o curso da região, como as aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos no verão de 1917 em Fátima, as campanhas de trigo dos anos 30, 40 e 50, e o 25 de Abril em 1974, ocorrido no apogeu da fileira têxtil na vila de Minde.

O fenómeno da constante mudança não parou desde então e, actualmente, a indústria já não é o que era, nem os campos, nem a população. “Os eucaliptais ocupam já grande parte das dolinas onde havia pastagens. As melhores terras estão ao abandono [ou construídas – como é o caso do Felgar]. (…) O sector primário foi abandonado pelos jovens e só os reformados se dedicam a uma agricultura em que o amor à terra e o gosto de comer o que é seu ultrapassa todas as canseiras”. Em contrapartida, a floresta tenta voltar (como é o caso dos espinheiros (Crataegus monogyna) na Mata, espécies autóctones e pioneiras na sucessão ecológica que cede lugar ao carvalhal clímax) mas com dificuldade, maltratada por incêndios, desordenamento do território e monoculturas de Eucaliptus globulus (espécie australiana de rápido crescimento para produção de pasta de papel, bastante inflamável).

“A cobertura vegetal que actualmente cobre esta zona é resultado de uma intensa humanização do território: a utilização do fogo para desbravar as matas implementando pastagens ou zonas agrícolas, o corte das árvores para aproveitamento da madeira ou lenha, o pastoreio, a introdução de diferentes espécies vegetais de carácter agrícola ou florestal, a abertura de vias de comunicação ou a construção de novas habitações. Estes foram os principais factores que originaram essas modificações iniciadas com os primeiros passos do Homem e que continuaram a manifestar-se, com maior ou menor intensidade, até aos dias de hoje. Desta destruição da cobertura florestal resultou uma acentuada diminuição da espessura do solo e um aumento da secura. (…) Ainda hoje existem vestígios que nos permitem imaginar como seria esse manto vegetal antes do Homem o modificar tão profundamente.” Estas bolsas sobreviventes são precisamente os lugares mais bonitos que todos reconhecemos e valorizamos por aqui: as grandes árvores na beira nascente da Mata, a galeria ripícola do Alviela, o carvalhal musgoso em Alvados, e outros mais de expressão rara e isolada.

E o que dizer da perda de solo fértil e humidade em contexto de alterações climáticas, que causarão o aumento da temperatura e da estação seca para esta zona com acrescidas dificuldades para a agricultura e gestão da água? As florestas são grandes prestadoras de serviços dos ecossistemas de incalculável valor: purificação do ar, produção e depuração da água, criação de solo, amenização e regulação do clima, sumidouros de carbono e fonte de inúmeros recursos naturais, habitat de muitas outras criaturas e reservatório genético com possíveis utilidades em medicina, ciência alimentar; só para nomear algumas. Face às ameaças que as actuais actividades humanas colocam sobre a resiliência das futuras gerações nestes territórios, talvez a floresta seja uma ajuda.

Todavia, como todos bem sabemos, as árvores demoram a crescer. E, no presente, fustigada por todo o lado, a Natureza precisa da nossa ajuda para voltar a erguer-se em tempo útil (para nós, entenda-se). É este o manifesto que aqui se faz: que conversemos uns com os outros sobre o que podemos fazer juntos para melhorar os ares à nossa volta e que ponhamos as mãos na terra. Está na hora de espalhar sementes – na natureza e nas nossas mentes. 😉

Republicado de:

Jornal de Minde, Novembro de 2018

Fotografias:

Saúl Roque Gameiro

Referências:

“Pereira, Fernando Faria; “Serra de Aire e Candeeiros: A Paisagem da Pedra” – Colecção Estudos e Documentos. Município de Torres Novas, 2009

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